A onda e a sombra
Ainda não me descobri um escritor. Que pena. Falta-me berço, base e erudição. Quem escreve capta o que todos sabem, mas não conseguem dizer. Quando lemos nos tornamos parte de um mundo que nos parece familiar, mas ao mesmo tempo desconhecido. Fui afortunado nestes últimos dias ao iniciar a leitura de “Os miseráveis”, clássico mundial escrito por Victor Hugo em 1862. Sua pena foi lancinante. Suas idéias profundas e reveladoras. Em meio a tantas riquezas oriundas de sua obra, garimpei um trecho para compartilhá-lo com você. Por favor, leia essa metáfora, sem pressa, e com a alma desprotegida.
(...)
“Homem ao mar!
Que importa? O navio não pára. O vento sopra, o sombrio navio continua em sua rota forçada e passa.
O homem desaparece, depois reaparece, mergulha e volta à tona, chama, estende os braços; ninguém o ouve. O navio, estremecendo sob o tufão, está voltando a suas manobras; nem os marujos nem os passageiros vêem mais o homem submerso; sua cabeça é apenas um ponto escuro na imensidão das ondas.
Grita desesperadamente das profundezas. Que espectro essa vela que lhe foge! Olha freneticamente para ela. E ela se afasta, vai desaparecendo, some. Havia pouco ele estava lá, fazia parte da tripulação, ia e vinha no convés com os outros, tinha sua porção de ar e de sol, vivia. Agora, o que havia acontecido? Escorregara, caíra, tudo se acabara.
Está dentro da água, que é monstruosa. Sob os seus pés, nada mais que ruína, nada encontra. As vagas envolvem-no pavorosamente, rasgadas e sacudidas pelo vento; o vai-e-vem do abismo o empurra; os farrapos das águas agitam-se em volta de sua cabeça; uma multidão de ondas rebenta sobre ele; estranhas aberturas quase o devoram; cada vez que afunda, entrevê precipícios escuros; uma medonha vegetação o prende, emaranha-se em seus pés, o atrai para ela; ele sente-se transformar em abismo, fazer parte da espuma; as ondas jogam-no de um lado para o outro; ele bebe o amargo; o oceano, covarde, se empenha em afogá-lo; a imensidão brinca com sua agonia. Parece que toda essa água é o ódio.
Mas ele luta.
Tenta defender-se, tenta sustentar-se, esforça-se, nada. Ele, pobre força logo esgotada, combate o inesgotável.
Onde está o navio? Longe. Mal se avista por entre as trevas pálidas do horizonte.
Sopram rajadas; a espuma das ondas o vence. Levanta os olhos e não vê mais que a lividez das nuvens. Assiste agonizante ao imenso delírio do mar e ele é o castigado por essa loucura. Ouve ruídos estranhos ao homem, que parecem vir de fora da terra e de algum lugar terrível.
Há pássaros nas nuvens, assim como há anjos por cima dos infortúnios humanos. Mas o que podem fazer por ele? Os pássaros voam, cantam, planam, e ele, agoniza.
Sente-se sepultado ao mesmo tempo por estes dois infortúnios: o oceano e o céu; um é sepulcro, o outro, mortalha.
Vem a noite. Há horas que ele nada, está no fim de suas forças; aquele navio, aquele vulto longínquo onde havia homens, apagou-se; ele está só num formidável turbilhão crepuscular; afunda, se debate, se retorce, sente abaixo monstruosas vagas do invisível; chama.
Não há mais homens. Onde está Deus?
Grita. Alguém! Alguém! Grita sem parar. Nada no horizonte, nada no céu.
Implora ao espaço, à onda, à alga, ao recife; são surdos. Suplica à tempestade; a tempestade, imperturbável, só obedece ao infinito.
Em torno dele, escuridão, névoa, solidão, tumulto tempestuoso e inconsciente, redemoinho incessante das águas bravias. Dentro dele horror e cansaço. Abaixo dele, a desgraça. Nenhum ponto de apoio.
Pensa nas tenebrosas aventuras de um cadáver na escuridão sem limites. Um frio imenso o paralisa. Suas mãos crispam-se, fecham-se e agarram o nada. Ventos, nuvens, turbilhões, rajadas, estrelas inúteis. Que fazer? Desesperado, abandona-se, cansado, deixa-se morrer, não se importa, deixa-se ir, larga mão, para sempre avança pelas lúgubres profundezas da voragem que o engole.
Ó implacável marcha das sociedades humanas! Perda de homens e de almas no meio do caminho! Oceano, onde desaparece tudo o que a lei desampara! Sinistro sumiço de socorro! Ó morte mortal!
Mar, a inexorável escuridão social onde a penalidade arremessa seus condenados. Mar, a imensa miséria!
A alma, na correnteza desse abismo, torna-se cadáver. Quem a ressuscitará?”
(“Os miseráveis”, vol. 1 – Victor Hugo – Martin Claret, pág. 112-114).
Quando terminei de ler esse trecho, senti-me impelido a repartir com você o tipo de vida que todos vivem. Afinal, esse odioso mar bravio, está implacavelmente assolando as entranhas de nosso amado país. Que Deus nos ajude!
(...)
“Homem ao mar!
Que importa? O navio não pára. O vento sopra, o sombrio navio continua em sua rota forçada e passa.
O homem desaparece, depois reaparece, mergulha e volta à tona, chama, estende os braços; ninguém o ouve. O navio, estremecendo sob o tufão, está voltando a suas manobras; nem os marujos nem os passageiros vêem mais o homem submerso; sua cabeça é apenas um ponto escuro na imensidão das ondas.
Grita desesperadamente das profundezas. Que espectro essa vela que lhe foge! Olha freneticamente para ela. E ela se afasta, vai desaparecendo, some. Havia pouco ele estava lá, fazia parte da tripulação, ia e vinha no convés com os outros, tinha sua porção de ar e de sol, vivia. Agora, o que havia acontecido? Escorregara, caíra, tudo se acabara.
Está dentro da água, que é monstruosa. Sob os seus pés, nada mais que ruína, nada encontra. As vagas envolvem-no pavorosamente, rasgadas e sacudidas pelo vento; o vai-e-vem do abismo o empurra; os farrapos das águas agitam-se em volta de sua cabeça; uma multidão de ondas rebenta sobre ele; estranhas aberturas quase o devoram; cada vez que afunda, entrevê precipícios escuros; uma medonha vegetação o prende, emaranha-se em seus pés, o atrai para ela; ele sente-se transformar em abismo, fazer parte da espuma; as ondas jogam-no de um lado para o outro; ele bebe o amargo; o oceano, covarde, se empenha em afogá-lo; a imensidão brinca com sua agonia. Parece que toda essa água é o ódio.
Mas ele luta.
Tenta defender-se, tenta sustentar-se, esforça-se, nada. Ele, pobre força logo esgotada, combate o inesgotável.
Onde está o navio? Longe. Mal se avista por entre as trevas pálidas do horizonte.
Sopram rajadas; a espuma das ondas o vence. Levanta os olhos e não vê mais que a lividez das nuvens. Assiste agonizante ao imenso delírio do mar e ele é o castigado por essa loucura. Ouve ruídos estranhos ao homem, que parecem vir de fora da terra e de algum lugar terrível.
Há pássaros nas nuvens, assim como há anjos por cima dos infortúnios humanos. Mas o que podem fazer por ele? Os pássaros voam, cantam, planam, e ele, agoniza.
Sente-se sepultado ao mesmo tempo por estes dois infortúnios: o oceano e o céu; um é sepulcro, o outro, mortalha.
Vem a noite. Há horas que ele nada, está no fim de suas forças; aquele navio, aquele vulto longínquo onde havia homens, apagou-se; ele está só num formidável turbilhão crepuscular; afunda, se debate, se retorce, sente abaixo monstruosas vagas do invisível; chama.
Não há mais homens. Onde está Deus?
Grita. Alguém! Alguém! Grita sem parar. Nada no horizonte, nada no céu.
Implora ao espaço, à onda, à alga, ao recife; são surdos. Suplica à tempestade; a tempestade, imperturbável, só obedece ao infinito.
Em torno dele, escuridão, névoa, solidão, tumulto tempestuoso e inconsciente, redemoinho incessante das águas bravias. Dentro dele horror e cansaço. Abaixo dele, a desgraça. Nenhum ponto de apoio.
Pensa nas tenebrosas aventuras de um cadáver na escuridão sem limites. Um frio imenso o paralisa. Suas mãos crispam-se, fecham-se e agarram o nada. Ventos, nuvens, turbilhões, rajadas, estrelas inúteis. Que fazer? Desesperado, abandona-se, cansado, deixa-se morrer, não se importa, deixa-se ir, larga mão, para sempre avança pelas lúgubres profundezas da voragem que o engole.
Ó implacável marcha das sociedades humanas! Perda de homens e de almas no meio do caminho! Oceano, onde desaparece tudo o que a lei desampara! Sinistro sumiço de socorro! Ó morte mortal!
Mar, a inexorável escuridão social onde a penalidade arremessa seus condenados. Mar, a imensa miséria!
A alma, na correnteza desse abismo, torna-se cadáver. Quem a ressuscitará?”
(“Os miseráveis”, vol. 1 – Victor Hugo – Martin Claret, pág. 112-114).
Quando terminei de ler esse trecho, senti-me impelido a repartir com você o tipo de vida que todos vivem. Afinal, esse odioso mar bravio, está implacavelmente assolando as entranhas de nosso amado país. Que Deus nos ajude!
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