Ouvir com os olhos



Weslei Odair Orlandi


Tenho pensado na quantidade de artigos, livros, mensagens, folhetos, e-mails e jornais que lemos anualmente falando sobre temas espirituais. Só no meu endereço eletrônico recebo dezenas de textos todos os dias. Uma verdadeira invasão virtual. Eu que, confesso, sou um tanto quanto exagerado em minhas leituras, leio anualmente algumas milhares de páginas. Como papel aceita tudo, deparo-me às vezes com profundos mau gostos literários. Erros de gramática, ignorância em semântica, equívocos de interpretação (uma lástima hermenêutica) e heresias francamente assumidas sobejam por toda parte; mas também encontramos leitura de gosto apurado, é verdade.
Alguém disse que “somos o que lemos”. Concordo em partes, discordo em outras. Se de fato fossemos tudo aquilo que lemos, a raça humana bem poderia estar em outros patamares de civilização e vida transcendental. Aliás, Jesus não precisaria ter estabelecido o conhecido paradoxo no sermão da montanha sobre o “ouvinte” prudente e o insensato. Bastaria incentivar-nos a ler. Exemplo clássico de leitura improdutiva é a que muitos fazem da Bíblia. Lê-la simplesmente pelo fato de que é o Livro Sagrado dos cristãos não resulta em mudanças profundas. Alguns dos intelectuais mais profanos são profundos conhecedores das Sagradas Letras. Eugene Peterson afirma de maneira lúcida e precisa que “ler a Bíblia não é o mesmo que ouvir Deus. Um não está necessariamente ligado ao outro, embora se presuma muitas vezes que sim”. Ouvir e ler não são a mesma coisa. E aí começam as complicações. Muitos de nós lemos a Bíblia simplesmente pelo hábito evangélico ao qual fomos condicionados ou então pelo medo de não sermos religiosamente corretos. Nada mais que isso. Antigamente, antes da invenção da imprensa, os cristãos ouviam mais do que liam. João chegou a dizer: “Bem-aventurado aquele que lê (note o singular), e os que ouvem (note o plural) as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo”, Ap 1:3 – Versão Revista e Corrigida. Dessa forma, ouvidos atentos e treinados absorviam a mensagem com mais facilidade. Hoje, a oralidade quase foi extinta. Milhões de Bíblias e outros textos impressos substituíram a prática do ouvir. Tornamo-nos a cada dia reféns das letras e nem nos damos conta de que elas quase não estão transmitindo nada a nós. Como disse o Nobel de literatura José Saramago, sobrevoamos muito e não pousamos em quase nada.
Ao divisarmos os limiares de 2009 gostaria de convidá-lo a uma retrospectiva para analisar o que lemos, o porquê lemos e quanto dessas leituras transformamos em verdades para nossas vidas. Se ao final de sua análise o diagnóstico apontar para um acúmulo de informação sem relação alguma com a prática diária de sua vida, não entre em pânico. Talvez você esteja sendo vítima do mal dos ouvidos que ouvem sem ouvir. Fique tranqüilo, o remédio para essa doença já foi descoberto. A maioria dos leitores de hoje tem sido vítima dessa endemia gritante. A bem da verdade, os resultados são quase sempre surpreendentes.
A desvalorização das letras como instrumento de Deus para falar conosco pode ser discutida, revertida e convertida novamente em verdade sine qua non. A proliferação dos recursos literários não deve ser vista apenas como um bem de consumo, mas principalmente como um jeito sutil e elegante de Deus gritar aos nossos ouvidos sua mensagem. Seguindo o raciocínio de Peterson “precisamos ler a bíblia não para encontrar bons sermões, mas para ouvir Deus”. Ele nos deu olhos para ver e ouvidos para ouvir. Uma vez que hoje lemos mais do que ouvimos então precisamos transformar nossos olhos em ouvidos, isto é, precisamos desentupir nosso coração e mente de todo lixo cultural, barulho intelectual, fofoca descartável e conversa suja, para de novo ouvir a voz do Senhor.
Precisamos voltar nossos olhos para a Palavra desafiando-nos a nós mesmos. William Shakeaspeare escreveu: “Oh, aprenda a ler o que o amor silencioso escreveu. Ouvir com os olhos é a maior sabedoria do amor”.
Qualquer cristão em sã consciência jamais irá contentar-se com a conclusão de que suas leituras (devocionais ou sistemáticas) não passaram de exercício mental. O mandamento que se refere a Deus não é LEIA, mas OUÇA. Ouça ao ouvir! Ouça ao ver! Ouça ao ler!
“Quem tem ouvidos para ouvir (e olhos para ler), que ouça”, Mc 4:9 – acréscimo meu.

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