Jó não lia o livro de Jó.
Weslei Odair Orlandi
Para qualquer leitor atencioso ou não do livro de Jó, o texto bíblico já chega mostrando o lado invisível de todo o drama vivido pelo personagem principal da narrativa. Jó, o homem sincero, reto, temente a Deus e que se desviava do mal é apresentado a todos como aquele que se viu disputado por forças espirituais nas regiões celestiais e é a partir dessa informação que lemos o restante da história. Jó, porém, nunca leu o livro de Jó. Ele não sabia nada do que sabemos. Ignorante sobre a batalha travada entre Deus e satanás sabia apenas quem uma avalanche sem precedentes de ruína e enfermidade se instalara em sua casa. Sua percepção dos fatos era apenas horizontal.
Sem que ninguém o avisasse de antemão, satanás compareceu certo dia à presença de Deus e demandou a vida do homem mais rico do Oriente em provações. Sabedor de seus males e perdas, rasgou suas vestes, rapou a cabeça, lançou-se em terra e adorou ao Criador: “Nu sai do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!” Em tudo isso Moisés, o provável escritor do livro de Jó, afirma que ele não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.
Tenho afirmado que nós leitores modernos da Bíblia Sagrada perdemos muito da emoção vivida pelos personagens bíblicos ao sabermos de antemão tudo o que vai ocorrer ao longo de suas histórias. Eles, porém, ao viverem os momentos que nos são relatados hoje pelo texto das Escrituras, nada sabiam do que nós sabemos. Eles nunca leram a história, pois eram, eles próprios, a história.
Ao ser atingido pela “bomba” satânica Jó não teve tempo sequer para estender as mãos ao alto e pedir socorro. Em um só dia a seqüência de tragédias (assaltos dos sabeus e caldeus) e acidentes naturais (fogo do céu e vento forte) dizimou seus animais, seus servos e todos os seus sete filhos. Nada restou, senão três mensageiros e uma esposa desequilibrada.
Hoje em dia, certamente não faltariam também os diagnosticadores do sofrimento alheio que a exemplo de Elifaz, Bildade e Zofar viriam tornar a dor aguda em dor lancinante. Normalmente é assim. Quando o mal se abate sobre alguém, logo os “entendidos” em assuntos não explicáveis saem de seu anonimato para, com o dedo em riste, justificar a calamidade. Esses são os amigos de Jó, plantonistas não autorizados em nome de Deus para assuntos da vida alheia.
A tragédia de Jó, apesar de estar separada de nossos dias por milhares de anos, continua sendo recontada hoje nos muitos cristãos piedosos que diariamente são marcados pela assolação e agonia. Há, contudo, algo pior do que a dor da perda; é a dor da impossibilidade de se provar a inocência. Os amigos de Jó também nunca leram o livro de Jó. Eles viam apenas o cenário de desolação imediata. Eles nada sabiam sobre as sutilezas e atrocidades de satanás. Para eles, portanto, havia uma única razão para tal desgraça: Jó pecara de alguma forma ainda que imperceptível contra o Todo-Poderoso. Nenhuma outra explicação poderia ser plausível senão a adversidade como resultado do pecado. Eu sei, você sabe, nós sabemos: nada disso ocorrera de fato. Jó era homem íntegro e nada fizera que o tornasse merecedor de tal situação.
Penso que temos cometido muitas injustiças em nome de nosso pseudo-discernimento. É mais fácil eleger o deslize moral como explicação para todas as coisas do que ficar calado ou procurar conclusões menos simplistas. Sou da opinião de que se os amigos de Jó tivessem continuado calados depois dos sete primeiros dias de silêncio teriam feito menos mal ao pobre homem coberto por chagas malignas.
Nossas idéias preconcebidas podem ser mais perniciosas do que jamais imaginamos. Deveríamos ser capazes de manter a isenção que se requer diante de um quadro de lágrimas, perdas e frustrações. Entretanto somos afoitos demais para cultivar a discrição. Preferimos agir em nome da moral religiosa e da crença de que somos os eleitos do Senhor para identificar pecados não confessos. Assim, sem reflexão piedosa e donos de uma cínica hipocrisia camuflada de espiritualidade à flor da pele, disparamos contra tudo e todos. Denunciamos, acusamos, julgamos, sentenciamos e condenamos. Sem levar em conta que as coisas ocultas pertencem a Deus sujeitamos toda dor ao juízo divino e isso sem contar que Deus mesmo estava bradando sobre seu servo Jó: “Ninguém há na terra semelhante a ele...!”.
Abdiquemo-nos da sede cruel de interpretação rápida e solução implacável. Que nenhum de nós falte às aulas da graça, misericórdia e compaixão. Que nenhum de nós seja reprovado na arte de ouvir mais e falar menos.
Talvez não seja tardio lembrarmo-nos do que dizia Shakespeare: “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”.
Para qualquer leitor atencioso ou não do livro de Jó, o texto bíblico já chega mostrando o lado invisível de todo o drama vivido pelo personagem principal da narrativa. Jó, o homem sincero, reto, temente a Deus e que se desviava do mal é apresentado a todos como aquele que se viu disputado por forças espirituais nas regiões celestiais e é a partir dessa informação que lemos o restante da história. Jó, porém, nunca leu o livro de Jó. Ele não sabia nada do que sabemos. Ignorante sobre a batalha travada entre Deus e satanás sabia apenas quem uma avalanche sem precedentes de ruína e enfermidade se instalara em sua casa. Sua percepção dos fatos era apenas horizontal.
Sem que ninguém o avisasse de antemão, satanás compareceu certo dia à presença de Deus e demandou a vida do homem mais rico do Oriente em provações. Sabedor de seus males e perdas, rasgou suas vestes, rapou a cabeça, lançou-se em terra e adorou ao Criador: “Nu sai do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!” Em tudo isso Moisés, o provável escritor do livro de Jó, afirma que ele não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.
Tenho afirmado que nós leitores modernos da Bíblia Sagrada perdemos muito da emoção vivida pelos personagens bíblicos ao sabermos de antemão tudo o que vai ocorrer ao longo de suas histórias. Eles, porém, ao viverem os momentos que nos são relatados hoje pelo texto das Escrituras, nada sabiam do que nós sabemos. Eles nunca leram a história, pois eram, eles próprios, a história.
Ao ser atingido pela “bomba” satânica Jó não teve tempo sequer para estender as mãos ao alto e pedir socorro. Em um só dia a seqüência de tragédias (assaltos dos sabeus e caldeus) e acidentes naturais (fogo do céu e vento forte) dizimou seus animais, seus servos e todos os seus sete filhos. Nada restou, senão três mensageiros e uma esposa desequilibrada.
Hoje em dia, certamente não faltariam também os diagnosticadores do sofrimento alheio que a exemplo de Elifaz, Bildade e Zofar viriam tornar a dor aguda em dor lancinante. Normalmente é assim. Quando o mal se abate sobre alguém, logo os “entendidos” em assuntos não explicáveis saem de seu anonimato para, com o dedo em riste, justificar a calamidade. Esses são os amigos de Jó, plantonistas não autorizados em nome de Deus para assuntos da vida alheia.
A tragédia de Jó, apesar de estar separada de nossos dias por milhares de anos, continua sendo recontada hoje nos muitos cristãos piedosos que diariamente são marcados pela assolação e agonia. Há, contudo, algo pior do que a dor da perda; é a dor da impossibilidade de se provar a inocência. Os amigos de Jó também nunca leram o livro de Jó. Eles viam apenas o cenário de desolação imediata. Eles nada sabiam sobre as sutilezas e atrocidades de satanás. Para eles, portanto, havia uma única razão para tal desgraça: Jó pecara de alguma forma ainda que imperceptível contra o Todo-Poderoso. Nenhuma outra explicação poderia ser plausível senão a adversidade como resultado do pecado. Eu sei, você sabe, nós sabemos: nada disso ocorrera de fato. Jó era homem íntegro e nada fizera que o tornasse merecedor de tal situação.
Penso que temos cometido muitas injustiças em nome de nosso pseudo-discernimento. É mais fácil eleger o deslize moral como explicação para todas as coisas do que ficar calado ou procurar conclusões menos simplistas. Sou da opinião de que se os amigos de Jó tivessem continuado calados depois dos sete primeiros dias de silêncio teriam feito menos mal ao pobre homem coberto por chagas malignas.
Nossas idéias preconcebidas podem ser mais perniciosas do que jamais imaginamos. Deveríamos ser capazes de manter a isenção que se requer diante de um quadro de lágrimas, perdas e frustrações. Entretanto somos afoitos demais para cultivar a discrição. Preferimos agir em nome da moral religiosa e da crença de que somos os eleitos do Senhor para identificar pecados não confessos. Assim, sem reflexão piedosa e donos de uma cínica hipocrisia camuflada de espiritualidade à flor da pele, disparamos contra tudo e todos. Denunciamos, acusamos, julgamos, sentenciamos e condenamos. Sem levar em conta que as coisas ocultas pertencem a Deus sujeitamos toda dor ao juízo divino e isso sem contar que Deus mesmo estava bradando sobre seu servo Jó: “Ninguém há na terra semelhante a ele...!”.
Abdiquemo-nos da sede cruel de interpretação rápida e solução implacável. Que nenhum de nós falte às aulas da graça, misericórdia e compaixão. Que nenhum de nós seja reprovado na arte de ouvir mais e falar menos.
Talvez não seja tardio lembrarmo-nos do que dizia Shakespeare: “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”.
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