Sodré.
Weslei Odair Orlandi
O sol já perdia sua força e ao longe se podia ouvir a cantiga de uma mãe que, feliz embalava em seus braços os sonhos de uma criança recém nascida naquela casa. O dia parecia não ter pressa de dar seu último adeus nem de deixar a noite refestelar-se na imensidão do céu paranaense. Já se fora o casal de pardal que com sua cantilena enchera de graça a tarde anuviada. Agora, absorto em seus pensamentos, Sodré não percebia nem mesmo seu resfolegar. Jorgina já tomara seu banho e não deixara de lado seu bordado desde a hora em que os netos barulhentos e indiferentes ao avô haviam ido jogar bola no outro lado da rua.
O lusco-fusco daquele dia seria melancólico e sereno, não fossem os pensamentos de Sodré. Ali, parado, sentado, calado, cabisbaixo e introspectivo, Sodré lembrava-se triste dos seus dias de saúde e vigor. Fora um homem de valor; nunca deixara de trabalhar um só dia, sempre de sol a sol. Lembrava-se dos seus dias de glória quando junto de seus primos costumava antecipar-se à alva do dia para pegar no batente. Às quatro da manhã estavam de pé, com a marmita na mão, as ferramentas prontas e as botinas nos pés. Nunca fora muito dedicado aos estudos. Dona Senira, a comadre de sua mãe é que andara lá pelas bandas do Rio Anta ensinando o abecedário para a gurizada da colônia. Logo que aprendeu ler aos tropeços e a escrever alguns garranchos o pai dissera que “minino homi tem é que pegá no batente”. Nunca mais colocou seus pés numa sala de aula. Também nunca se importara com isto mesmo. O que sabia a vida lhe ensinara.
Ainda moço deixou a roça e foi tentar a vida na cidade. Os primeiros anos não foram fáceis; ainda mais com os militares na rua pressionando todo mundo. Passara um medo danado, quase foi preso um dia. Não fosse um colega seu ter falado em favor dele e ter convencido o soldado e teria dormido na cadeia aquele dia. Deu um duro para não ter de voltar para a vida que deixara.. “Aquilo não é vida e pra lá eu não volto. Ainda que eu tenha de morar debaixo da ponte, daqui eu não arredo pé”, dizia para Jorgina, a faxineira que conhecera logo que descera do ônibus numa tarde quente de um verão saudoso e que, meses depois veio juntar os trapos com ele. Agora, anos depois, pai de três filhos já casados, comprara um terreno, construíra um barraco, simples, mas seu, e até conseguira comprar um Voyage verde. De um ex-colega de serviço. Havia conseguido aposentar-se na empreiteira que o contratara dois anos depois de deixar a roça. Estava feliz. Era hora de viver um pouco mais tranqüilo.
Já estava curtindo sua aposentadoria há uns quarenta dias, quando sentiu uma dor forte no peito, um formigamento no braço e dores forte de cabeça. Seu Inácio, o vizinho da esquerda o levou correndo para o hospital, mas o médico disse que não tinha mais jeito. O caso era sério. Fora acometido por um derrame certeiro. Ficou no hospital uma semana e ao voltar para casa, não podia andar, não conseguia falar; só conseguia mexer um braço, e com dificuldade. Tanto trabalho, tanto esforço e agora que parecia ter chegado a hora de descansar, estava ali, preso naquela cadeira. Sentado na verdade, mas cansado. Queria mesmo é poder andar, jogar conversa fora nos bancos da praça, com os velhos amigos de fim de semana. Mas não, tudo que precisava era a Jorgina que trazia e colocava na sua boca.
Não foram fáceis os primeiros dias de cadeirante; aqueles de quando chegara pela primeira vez na cidade grande nem podiam mais ser contados como difíceis. Porém, agora já se resignara. Fazer o quê. A vida é assim. Enquanto uns que são maus vivem tranqüilos, outros que são bons e honestos acabam seus dias numa cadeira, vendo o sol dar adeus, os pardais cantarem sem ficar roucos, as crianças dormirem felizes no colo da mãe e a mulher ficar lá dentro, sem assunto, bordando, cantarolando e pensando sabe-se lá o que. Como dizia seu avô: “vida boa, só quem teve foi o jeca, que de tanta preguiça, acabou se tornando história do país”.
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