Viver


Weslei Odair Orlandi


Ter vida; existir; durar; perdurar. Estas são algumas das principais definições do verbo intransitivo “viver”. Parece simples, nem precisa de preposição ou de complementos. Não nos iludamos, porém; a completude para por aí; sequer consegue extrapolar as fronteiras do Aurélio.

Viver não é simples. Não. Viver é complexo, profundo, às vezes doloroso, lamurioso. Mas também tem seus contornos de leveza, felicidade intensa, de recompensas inebriantes. Eu gosto de viver. Apesar de tudo viver é bom, muito bom. É verdade que nunca se pode saber ao certo como se viverá, pois a vida é inédita a cada milésimo de segundo. Milan Kundera tem razão: “tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado”. E prossegue: “Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida?” Gosto da sua conclusão: “É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro”.

Um esboço sem quadro, isto é, a vida não poderá jamais ser revista, repensada, refeita e só então emoldurada e vivida. Viver é viajar numa estrada sem retornos. Segundo a Bíblia a duração da vida é quase nada se comparada ao desejo teimoso que todos têm de ficar vivo. A vida só vai, se esvai e nunca volta. Setenta anos e o que resta são alguns minutos de acréscimo concedidos ou não pelo Supremo Juiz.

Na medida em que vivemos também morremos. E por isso, perdoem-me, mas simplesmente não dá para falar da vida sem também pensar na morte. Algumas pessoas dizem que eu insisto demais nesse assunto. Certamente que eu, talvez, possa cometer alguns excessos. Mas a verdade é que não tem jeito. A vida e a morte sempre estiveram presentes em todos os tempos. No primeiro diálogo entre Criador e Criatura já se falou sobre viver e morrer. Desde então nunca mais se pôde ignorar um em detrimento do outro.

Tenho lido sobre viver e morrer. Esse assunto me fascina, me seduz, me envolve. Verdade seja dita eu não gosto de ler sobre a morte. Se a estudo é porque quero entender a vida. Assim quando falo da morte não é dela que quero me aproximar. Quando me debruço sobre os livros e me vejo eviscerando a dita cuja me descubro na verdade é lutando para afastar-me dela. Peço licença para usar aqui as palavras de Lya Luft e poder definir melhor esse parágrafo: “nem é da morte que falo quando escrevo a palavra “morte”: falo da vida, que um dia será declarada irreversível e irrevogável, com tudo o que fizemos e deixamos de fazer até a hora daquela enigmática visita: desde o nosso primeiro grito ao chamado último suspiro”.

Estamos todos passando nesse minuto e também nos minutos seguintes por um processo irreversível de vida e morte. Todos nós temos entrelaçados à alma duas linhas que se opõem. A primeira é descendente, empurra para baixo, para o fim, para a terra. A segunda é ascendente, promove, aponta para o céu. A primeira nos lembra da morte, a segunda nos lembra da vida. A primeira nos condena, a segunda nos liberta. A primeira nos limita, a segunda reforça a certeza da eternidade. Viver é mesmo subir uma escada rolante pelo lado que desce. Li essa frase em algum lugar.

É isso. Estamos na fila de espera aguardando a próxima chamada. Alguns serão chamados primeiro, outros só daqui a pouco. Não temo esse dia nem temo por mim mesmo. Meus temores são outros. Temo por aqueles que, entremeado às linhas da vida e da morte dão espaço à incerteza, à protelação e à indiferença.

Viver aqui é sublime, mas efêmero e ilusório. A verdadeira vida, aquela que só o além revelará e que nada tem de efêmero e ilusório, só conhecerá aqueles que se deixarem conquistar pelo Doador da Vida. À margem disso a noite será eternamente fria, carregada de penúria, remorsos e acusações.

Viver é um risco, mas correr o risco de morrer sem certeza de vida eterna é mais arriscado ainda. Assim, corra o risco de viver e se julgar necessário risque de sua agenda o que não for importante. Ignore, deixe para depois, descarte, divirta-se; só não brinque com a vida... E também com a morte.

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