Saul: seus medos, coragem e covardia.
Tanto a amizade, quanto a cordialidade e a admiração de Saul para com o jovem Davi foram de curta duração. Não porque Davi tenha cometido algum delito, traição ou deslealdade, mas porque o rei de Israel era interiormente doente.
A julgar pela descrição física Saul, o primeiro israelita a usar uma coroa real, tinha todos os predicados para ser um monarca de sucesso e respeitado por todos. Jovem de boa aparência, sem igual entre os israelitas – os mais altos batiam nos seus ombros – Saul logo foi confirmado como líder da nação e o causador de momentos de grande alegria entre o povo. Tratava-se então, de um novo momento de estabilidade política e econômica para Israel. Logo, porém, surgiram as primeiras crises. Primeiro veio sua precipitação ao oferecer ele mesmo holocaustos em Gilgal, desobedecendo a ordem clara de Samuel para aguardá-lo. Depois veio seu juramento precipitado em Gibeá o que quase resultou na morte de seu filho Jônatas. Mais tarde outro ato de desobediência a Samuel que ordenara a morte imparcial de todos os Amalequitas tornou ainda mais complicada a situação do rei. Isso, porém, não era nada se comparado ao que ainda estava por vir. Saul se revelaria ainda mais problemático, perigoso e surpreendentemente enfermo.
Certo dia, quando em guerra contra os filisteus e acuados por Golias, o gigante, o exército de Saul achava-se imobilizado e apavorado, Davi o “ninguém que ninguém notara, exceto Deus”, saiu das sombras do anonimato e com uma pedra desbancou a fama do herói filisteu matando-o e decepando-lhe a cabeça. Iniciava-se nesse dia a breve afeição de Saul pelo jovem pastor de ovelhas. Convocado a permanecer na companhia do rei, Davi logo se tornou amigo de seu filho com quem fez um acordo de amizade. Disciplinado e dado à obediência fazia com grande habilidade tudo quanto Saul ordenava o que lhe rendeu em pouco tempo um posto elevado no exército. Um dia, porém, quando voltavam para casa, Saul ouviu o cântico das mulheres que saiam para saudá-los e o refrão que atribuíam a ele milhares e a Davi dezenas de milhares. Dar-se-ia nesse instante o rompimento da frágil simpatia do rei por seu súdito. A partir desse dia seu coração nunca mais se livraria da inveja, do ódio e do medo de Davi.
Saul passou por algumas metamorfoses infelizes em relação a Davi: de amigo a inimigo; de admirador a perseguidor; de rei a caçador; de sogro a desafeto político. Isso sem contar outros aspectos menos visíveis de seu comportamento volúvel. Saul nunca mais conseguiu voltar à normalidade. Como que destinado a descer sem misericórdia a escada da rejeição ele se entregou de corpo e alma a alimentar seu desejo sórdido de aniquilar quaisquer traços de seu inimigo imaginário.
Não era preciso agir assim; Davi nunca ambicionou depô-lo de sua posição tampouco desejou a sua morte. Seus temores eram de natureza infundada, sua sede por destruir a vida de seu genro e melhor soldado era apenas o resultado de um coração doente, amador, pouco experimentado na arte da boa convivência e principalmente destituído de intimidade com Deus. A soma desses desatinos de Saul foi a mola propulsora para o temor descabido que inflamou por anos o seu coração. Na mesma proporção em que o temia enchia-se de coragem para extravasar sua sandice. Um medo corajoso que dava lugar a uma coragem covarde. Foi assim que, ladeira abaixo, Saul gravou na memória de todos sua biografia infeliz. Uma vida ordinária que não suportou o peso da convivência ao lado de pessoas extraordinárias.
Nem é preciso ir mais longe para tentar dizer o que se faz óbvio a essa altura: é melhor viver despretensiosamente uma vida de amizade e aceitação confirmando-se como um ninguém na multidão do que finalizar os poucos dias que nos são dados conhecidos por todos, mas sem ser amado por ninguém. Foi esse o resultado final da vida insossa do primeiro monarca de Israel. Atormentado, vencido pelo medo e dono de uma coragem covarde, Saul teve que, ele mesmo, apagar as luzes do seu mundo conturbado. A morte suicida de Saul fez descer a cortina sobre o que é irremediavelmente mortal – o homem – porém, amargurado, vencido e infeliz foi, logo depois, apresentado ao mundo dos imortais onde vive desde então a plenitude e a consumação dos seus erros. Pobre Saul!
Comentários
http://prmarcello.blogspot.com/