AS OUTRAS FACES DA MORTE.

Quem nunca teve medo da morte é porque nunca a viu sorrindo para ele. Não adianta. Ninguém “morre” de amores por ela. Assim, morte após morte a intensidade dos gemidos e a repulsa por sua presença sutil, inesperada e quase sempre fatal vai se disseminando e se fortalecendo por todos os lados. A humanidade discorda de muitas coisas, mas numa o consenso é universal: a morte é indubitavelmente persona non grata.
         Seguindo a opinião geral também admito não ter queda alguma por ela. Não porque a temo, mas porque não me interessa ver sua cara esbranquiçada. Só isso. Entretanto, ainda que parecendo ser paradoxal saio hoje em sua defesa. O motivo eu explico no parágrafo a seguir.
         A morte tem outras faces. Uma é essa tracejada a partir de crenças, percepções, sentimentos e reflexões populares. Outras, acredite, são menos apovarantes. Mas para vê-las é preciso sair do imaginário e singrar rios às vezes miticamente assombrosos; é preciso ficar de longe, sondar sem pressa e sem preconceitos. Com um pouco de coragem, depois disso, será até possível concordar com o Cazuza e quem sabe resmungar os versos que ele compôs: “senhoras e senhores/trago boas novas/eu vi a cara da morte/e ela estava viva...”
         A morte, essa senhora impopular, pode ter seu lado bom. Foi o que percebi relendo, por exemplo, a paixão de Cristo. Ali, sutil, nas entrelinhas da dor pude notar que embora pouco notável a morte não é só penúria, despedida, estraga prazeres. Por mais trágica que ela pareça ser não deve ser tida apenas como execrável. Acredite se quiser, mas a verdade é que com um pouquinho de imparcialidade dá até para notar que ela tem seu lado bom.
         Apesar do escândalo que é enveredar-se por esse caminho apologético não pretendo aquiescer diante dos protestos e dedico-me aqui a suavizar os sulcos cavados na cara da morte. Ela não é apenas feiúra. Também pode ser bela – se esse adjetivo é demais para você fique à vontade para encontrar outro menos abusivo -, necessária e cumprir propósitos elevados. A morte cumpre funções altamente nobres. Não é apenas um apagar atrevido de luzes radiantes. Não é apenas humilhação; ela também exalta. Não é apenas dor; em muitos casos é também anestésico. A morte não é apenas fim; é só por meio dela que a eternidade se viabiliza. A morte não é apenas maldade; em muitos casos tem servido de adstringente contra a injustiça, a arbitrariedade, a mesquinhez e a profanação.
         Por fim, ainda que me falte curiosidade, que em mim persista a recusa, que me falte a pressa ou que sobeje a resistência sei que não serei páreo para ela. Assim, cara a cara com morte certeira, constante e silenciosa faço as pazes com ela restando poucas alternativas; uma delas, concordar com os versos de Carlos Drummond de Andrade o que faço antes que ela chegue: “a cavalo de galope/a cavalo de galope/lá vem a morte chegando./A cavalo de galope/a cavalo de galope/a morte numa laçada/vai levando meus amigos/A cavalo de galope/depois de levar meus pais/a morte sem prazo ou norte/vai levando meus amores./A morte sem avisar/a cavalo de galope/sem dar tempo de escondê-los/vai levando meus amores./A morte desembestada/com quatro patas de ferro/a cavalo de galope/foi levando minha vida./A morte de tão depressa/nem repara no que fez./A cavalo de galope/a cavalo de galope/me deixou sobrante e oco”.

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